Na minha infância não houve Barbies, nem bonecas Moranguinho, apenas
bonecas de pano com cabelos de restos de lã colorida que nossas mães, ou nós
mesmas, costurávamos e bolas feitas de meias de pano, bem esticadas e cheias de
retalhos, que de outra forma virariam lixo, chutadas até não poder mais.
A minha infância não teve aulas de balé, cursinho de inglês ou mandarim,
nem natação, mas teve longas caminhadas e corridas entre campos e pinhais que
se estendiam, a perder de vista, do alto do Calvário onde morava.
Minha infância teve noites quentes de um luar de agosto, tão claro e
brilhante, que nos permitia enfiar agulhas de costura à luz pálida da lua
enquanto contávamos histórias de ciganos que roubavam criancinhas rebeldes que
fugiam ao controle dos pais, e as do terror provocado por uma possível pestana
do temido Zé do Telhado deixada, como marca de sua presença, na fechadura da
porta. Afinal Portugal teve seu ladrão mítico, misto de Robin Hood com Papai
Noel, que assaltava os ricos, não nos bosques, mas subindo ao telhado e entrando
nas casas abastadas, talvez pela chaminé, roubando mantimentos ou joias, que
depois distribuía, generosamente, pelos pobres. O Zé do Telhado era a união
perfeita entre o bem e o mal num só indivíduo.
Na minha infância não havia lápis coloridos, giz de cera, nem cadernos
de papel Canson para desenhar, mas havia um largo chão de terra batida e muitos
gravetos, galhos secos, caídos das árvores para traçarmos riscos e rabiscos,
apagados com os pés, ou com as mãos, ou deixados ao vento que os levava na sua
dança.
Na minha infância subíamos às árvores, como gatos ligeiros, sem a
preocupação de não rasgar as roupas sem grife e ficávamos horas a fio,
contemplando os campos de trigo ou de centeio de onde, a espaços, o vermelho
das papoulas, falava da primavera e o milho dourava ao sol quente do verão e o
desafio era ver quem chegava ao galho mais alto e mais frágil sem cair, e nem
precisávamos roubar os ovos dos pássaros. Do alto, podíamos contemplar, as
ceifeiras cortando a erva para o gado ou as lavadeiras, com suas trouxas de
roupa, cantarolando a caminho do riacho e escutar seus risos, e adivinhar os
cochichos sobre a vida alheia, sem causar tanto estrago na reputação quanto uma
fofoca de Internet.
Na minha infância havia risos e choro, pois a vida e a morte caminhavam
lado a lado, acontecendo no tempo certo de nascer, viver e morrer, seguindo o
curso natural da vida.
Na minha infância havia pés descalços e os sapatos serviam para ir à
escola e à missa de domingo, com o melhor vestido de chita. Durante a semana
era o pé no chão, o caco de vidro ou o espinho enterrado, a queimadura do
asfalto na única estrada que cortava a aldeia rumo à cidade, enquanto
esperávamos o porvir...
E quem foi que disse que a minha infância era pobre, ou menos feliz, por
não ter um quarto cheio de brinquedos prontos, um autorama, bonecas de salto
alto, um tablet ou o smartphone da última geração?
Em tempos de confinamento exercitar a palavra é bom.
ResponderExcluirQue texto lindo e que infância maravilhosa ❤️
ResponderExcluir❤️
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