16.5.16

A Vida em Pedaços Repartida - 2

À Sombra do  Cajueiro

Sentada debaixo do cajueiro, numa velha cadeira de lona, Maria Júlia olhava em redor e uma suave brisa trazia-lhe lembranças de um passado longínquo. Era um passeio no tempo, que aquele estado de modorra lhe oferecia. O dia estava quente como convém a um fim de tarde africano, quando o sol baixa no horizonte tingindo de tons alaranjados o céu azul.
A brisa trazia-lhe memórias não vividas, de um soar de tambores, enquanto o negro Josias gritava, no momento em que era açoitado por algum Sipaio[1] de plantão. Qual seria o novo desacato de Josias? Uma boa dose de indolência ou uma resposta insolente a seu senhor? Por mais que tentasse, Maria Júlia não conseguira nunca entender com que direito um ser humano se acha dono de outro e pode espancá-lo a seu bel prazer. Tratou de afastar, para bem longe, reminiscências de um passado que não mais lhe pertencia, mas o som dos tambores não deixava de ecoar em seus ouvidos.
De regresso ao presente, olhou em redor e seguiu, com o olhar, um caju maduro que despencou do ramo mais alto do cajueiro e que, só por milagre, não a atingiu em cheio. A brisa fresca do entardecer trouxe-lhe novamente imagens do passado, como as dos dias em que, debaixo daquele mesmo cajueiro, era obrigada a segurar, pelas patas traseiras, o pobre coelho acabado de morrer com uma pancada seca atrás das orelhas, para que o pai o pudesse esfolar.  E, apesar da pena que sentia do pobre bichinho, aprendeu rapidamente a saboreá-lo, depois de cozinhado. Naquele tempo, fazia parte das suas tarefas diárias alimentar os coelhos e galinhas e outros pequenos serviços de ajuda doméstica, além da frequência às aulas e de manter em dia as lições de casa. O resto do tempo era correr pelo quintal e subir às árvores, procurando sempre o galho mais alto, mas firme.
Enquanto estes e outros pensamentos corriam soltos na mente de Maria Júlia, como se de um filme se tratasse, escutou ao longe um sonoro cantar de galo e percebeu o alvoroço de uma galinha que esvoaçava ali por perto, perseguindo algum inseto inoportuno, e bicando os frutos que jaziam no chão.
Não havia, praticamente, fotos desse tempo e dessa casa, mas guardara para sempre na memória a enorme varanda que ladeava os quartos amplos, ao fundo do corredor que a ligava à sala de jantar. Esta, por sua vez, dava para o pátio com uma breve escada que levava ao quintal onde, além do enorme cajueiro à sombra do qual, em imaginação, se sentava, havia outras árvores de fruto, como goiabeiras e mangueiras e uma bananeira mais adiante. Era um enorme terreno de esquina para duas ruas identificadas por um número em lugar de nome.
Esse divagar, entre sonho e realidade levou Júlia a uma lembrança bem distante, mas muito presente ainda na sua memória. Havia uma festa na cidade vizinha e tinham sido anunciados fogos de artifício para aquela noite. A família havia-se preparado para ir assistir quando uma violenta discussão entre o casal pôs fim ao passeio. Diante da frustração de Júlia, que não tinha ainda completado dez anos, o pai pegou a bicicleta, colocou uma almofada no quadro e pedalou na escuridão por um tempo que parecera, a Júlia, infinito, mas que valera muito a pena diante do espetáculo de luz e cor que se desenhava no céu a cada instante. Foi o êxtase! Nunca tinha visto, nem veria jamais, uma profusão de luz e de cor tão intensa e deslumbrante! A vida proporcionou-lhe muitas oportunidades de ver fogos de artificio, os mais belos do mundo, como dizem ser os das festas de Santa Luzia, em Viana do Castelo, ou os da passagem do ano na praia de Copacabana no Rio de Janeiro, mas nenhum deles conseguiu superar a imagem que guardava, daquela noite escura como breu em que andou por dentro da noite, até chegar ao local do deslumbrante espetáculo. Essa, é mais uma das memórias sem registro fotográfico, que guardará para sempre, impressa na mente, imagem que poderá acessar, sempre que quiser, e será bem sua, intransmissível a quem quer que seja. Em vão olha ainda os céus em busca daquela lágrima de fogo, iluminando a silhueta daquele pai que acabava de reencontrar depois de longa ausência, e ainda era pouco mais do que um desconhecido íntimo de quem sondava os mistérios.
Tantos anos volvidos e, sempre que fecha os olhos e permite ao passado fazer incursões no presente, aquela noite mágica estrala fogos coloridos em sua mente!
Um arrepio provocado pelo vento que, de repente, começara a soprar forte lembra-lhe que deve recolher-se pois a noite chegou e com ela relâmpagos e trovões vindos dos quatro pontos cardeais, iluminam o céu e anunciam a tempestade tropical, assustadora e bela.
Os ramos das árvores fustigados pelo vento forte, dançam sem parar e, num passe de mágica, o céu se abre em violentas bátegas de água que lavam e refrescam o ar. É uma chuva quente que inunda as ruas, sobretudo na maré alta, arrasta o que encontra pela frente, enquanto no alto, raios e trovões parecem travar um duelo sem fim, mas pouco tempo depois, toda a violência se esvai e fica o ar lavado em volta e o calor abrasa a noite do verão africano.
Maria Júlia vê-se agora sentada na espreguiçadeira do convés do navio, lendo Guerra e Paz de Tolstoi quando se apercebe de um pequeno novelo de linha de crochê, escapado do colo da senhora sentada na espreguiçadeira ao lado, rolando em sua direção. Afasta o livro, debruça-se na cadeira para apanhar do chão o novelinho atrevido e, com um sorriso, entrega-o à dona. Começava, naquele gesto simples, um longo percurso de amizade, diluída agora numa longa ausência e distância. Era uma família pequena, composta pelo casal e um filho de idade muito próxima à de Maria Júlia. Trocaram-se olhares, apresentações e, logo em seguida, um convite do filho para um banho de piscina. Maria Júlia aceitou o repto e dispôs-se a ir colocar o fato de banho e, enquanto se deslocava para o camarote, escutou a voz dele, em tom galhofeiro, dizer:
- Venha rápido! É só colocar o maiô, não o vestido de noiva! Todos riram e em alguns minutos ela retornou, pronta para o mergulho. Era apenas o segundo dia de viagem, dos quinze de duração total e ainda ninguém entrara na piscina, como se todos quisessem ver quem seria o primeiro a inaugurar o espaço. O “Príncipe Perfeito” era um dos melhores navios da frota mercante portuguesa da época, uma pequena cidade flutuante que contornava a costa africana, do Atlântico ao Índico, refazendo sempre a rota de Vasco da Gama, levando e trazendo passageiros de Portugal à Índia. Os dias corriam preguiçosos entre refeições, jogos, dança e banhos de sol ou de piscina, num escoar de horas até ao próximo porto, onde era quebrada a rotina.
O café, depois do almoço, era o pretexto ideal para um desfiar de anedotas e de risos, que às vezes chegavam às lágrimas, e aquele grupo parecia ser o mais divertido, por isso não faltava quem fosse chegando a cadeira para mais perto para poder participar daquele ritual diário de alegria. Algumas noites era projetado um filme, ao ar livre, no convés e os passageiros se reuniam para assistir.  Naquele dia, João Paulo chegou, de blazer azul marinho e, depois de assistirem a “Luzes da Ribalta” convidou Maria Júlia para darem um passeio pelo convés. Ela disse:
- Pareces um colegial, com esse blazer marinho!
- Estou-me sentindo um colegial que vai sair com a primeira namorada!
Ambos riram, desceram ao convés inferior e passearam, de mãos dadas, olhando a escuridão da noite, a luz prateada do luar refletida nas águas do Índico, enquanto a brisa marítima os envolvia numa carícia silenciosa, cheirando a maresia e a espuma branca das ondas se desfazia de encontro ao casco do navio. As estrelas, o luar e a noite, foram as testemunhas silenciosas de um grande amor que acabava de nascer, mas, desde então, condenado a não se efetivar, pelo capricho de um destino cruel. João Paulo, acabara de se desligar do exército e aproveitava a licença graciosa dos pais para passarem uns meses juntos, viajando, antes de iniciar a sua vida profissional civil. Havia firmado compromisso com uma moça que, segundo ele, saíra de uma desilusão amorosa e estavam começando um relacionamento. Nada disso impediu que entre Maria Júlia e João Paulo, se acendesse a chama da paixão e ambos correram o risco de vivê-la, mesmo suspeitando que não teria o final do “felizes para sempre”! Uma noite aconteceu o primeiro beijo, longamente consentido e desejado por ambos.
Um dia, aconteceu o inevitável. João Paulo saiu da vida de Maria Júlia, para sempre. Seria para sempre? Apesar da dor intensa da separação, das lágrimas inúteis de Maria Júlia, e de novas juras de amor a cada recaída, a cada encontro, desencontro e reencontro, um dia ela jurou para si mesma que não cairia mais nas promessas da voz aveludada e quente dele. Colocou um ponto final, recusou-se a procurá-lo. Às vezes ele reaparece-lhe em sonhos, deixando no ar um cheiro a maresia, a escuridão, a espuma branca e ao luar prateando nas águas, mas quando abre os olhos devagar, só encontra o vazio, a solidão.
Maria Júlia fechou o livro que lhe descaíra no colo, levantou-se lentamente, entrou em casa, esboçou um sorriso que poderia, muito bem, ser de felicidade por, tanto tempo depois, poder recordar com saudade a que foi, a mais doce lembrança de sua vida. Entrou em casa e a chuva, pesada e quente lavou suas lembranças.
Celeste Baptista
Maio de 2016




[1] Sipaio – Sipai, Sipal ou Sipaio  (Pers. Sipãhi  pertencente à cavalaria), Soldado indígena da Índia , ao serviço dos ingleses (o mesmo designativo usado em Moçambique, ao serviço do governo português).

14.5.16

O Bluebird


O Bluebird 

Setembro. Noite cálida de primavera africana! As aulas terminaram no horário de sempre e Carla saiu apressada para pegar o machimbombo[1] que, naquele dia, teimava em não chegar, talvez por capricho do motorista que se adiantou, ou do relógio que não marcara a hora certa.   Eram dez da noite e, àquela hora, não pegar o transporte no horário, significava ficar ali, por quase uma hora, esperando o próximo, num lugar deserto e sombrio. Era um absurdo que o transporte utilizado, quase com exclusividade, por alunos que saíam das escolas noturnas, passasse bem no horário em que elas fechavam, pensava Carla enquanto andava de um lado para o outro, como se a breve caminhada, diminuísse o tempo de espera. E continuou pensando que se o horário fosse uns 10 a 15 minutos depois, seria o suficiente para que ninguém fosse obrigado a esperar o próximo transporte, por tanto tempo. 
De um lado da rua ficava o enorme prédio do Liceu, que agora, de luzes apagadas e imensos corredores vazios, mais parecia um prédio fantasma. Do outro lado, um belo jardim não muito iluminado, a que as sombras movediças da noite emprestavam um ar assustador. Não era dada a medos, mas a hora e a ausência total de transeuntes, fazia com que qualquer movimento de folhas ou surgimento de pessoas ou de algum gato sorrateiro, ou cão vadio, se tornasse suspeito e pouco acolhedor. 
Era nesse ambiente sombreado por frondosas árvores em que Carla, completamente só, esperava o machimbombo para o Centro da cidade. Alguns carros passavam, abrandando a marcha ao notar a moça, sozinha, naquele lugar ermo. Sem prestar grande atenção aos carros e andando de um lado para o outro, abraçada aos livros, que segurava contra o peito, em atitude defensiva, pensava em quanto tempo ainda teria de ficar ali, enfrentando sozinha a escuridão. O caminhar impaciente, de um lado para o outro, para aliviar as pernas do desconforto de ficar de pé, parada, dava-lhe a ilusão de encurtar o tempo de espera, como se, dessa maneira, os ponteiros do relógio se adiantassem.
Apesar da miopia e da pouca luz circundante, pôde perceber que o Bluebird[2] que acabava de parar cerca de um metro à sua frente, já passara várias vezes por ali. Que desejaria o homem que caminhava lentamente, sorrindo, em sua direção, pensou. Ficou aliviada ao reconhecer o rapaz de estatura mediana: era um colega de classe, que assim se dirigiu a ela:
− Passei e vi-a sozinha, a esta hora, resolvi dar uma volta e passar de novo. Neste horário o machimbombo demora...
− É, respondeu Carla que, ainda permanecia em guarda, embora reconhecesse não haver perigo.
− Vai para onde? Quer uma boleia[3]?
As aulas haviam começado há poucos dias e, embora se sentassem lado a lado na aula de Latim, mal tinham trocado algumas palavras. Carla aceitou a boleia, gentilmente oferecida por Marcos, tanto pela urgência de sair daquele lugar ermo, quanto da de fugir da horda de pequenos insetos que volteavam em torno da lâmpada, e de alguns mosquitos atrevidos que não paravam de assediá-la.  A noite estava agradável! Entraram no carro e, em menos de dez minutos, chegaram à Baixa, pararam à porta do prédio onde ela morava, bem no centro da “cidade das acácias vermelhas”, como era conhecida Lourenço Marques. A conversa estendeu-se por mais uma hora e assim nascia uma grande amizade.
Criada entre o verde dos pinheiros, chegara a África ainda criança. Ausentara-se para estudos na Europa e, voltava agora, aos dezanove, para uma África que sabia amar, mas ainda não conhecia a extensão desse amor, nem tinha a ideia de que teria de abandoná-la dez anos depois, na certeza de que estava presa nas malhas de um xicuembo[4] que habitava as águas do Umbelúzi[5] e que, de tanto beber dessas águas, se achava, definitivamente, presa à terra amada e perdida. Ironias do destino!
A África é um continente misterioso e envolvente, que se agarra à pele, invade os sentidos, com uma sensação de pertencimento, como se sempre ali se tivesse vivido. Marcos, beirando os trinta, cursara o Magistério e era já diretor de escola. Pretendia aproveitar a recente inauguração da Universidade, para tirar o curso superior de História, por isso tinham apenas algumas disciplinas em comum. Depois desse dia, passou a ser habitual ele levá-la a casa e conversarem, por um bom tempo, dentro do carro, na rua em frente ao prédio.  Os assuntos eram diversos e estabelecia-se um diálogo que corria solto e agradável e nenhum dos dois tinha pressa em dar-lhe um fim. A despeito de comentários maldosos, provocados pela estranheza de um homem e uma mulher ficarem ali, por tanto tempo, na rua quase deserta, sozinhos, dentro de um carro, o que acontecia, eram apenas diálogos intermináveis, alegres, inocentes, entre amigos. Era ousado para a época esse padrão de comportamento. Nesse tempo, homens e mulheres ensaiavam o diálogo da igualdade, mas as mulheres que se permitiam conversar mais demoradamente, em público, a sós com um homem, ainda eram olhadas de soslaio.
Nestes tempos, em que meninos e meninas “ficam” uns com os outros, num assanhamento de fim de mundo, torna-se difícil imaginar que durante anos, aquelas conversas foram apenas conversas e que, mesmo que uma vez ou outra, ele lhe tomasse as mãos entre as suas e comentasse: “Que mãos frias” ao que ela rindo completava o dito popular ”coração quente” enquanto as retirava daquele aconchego macio, nada de libidinoso havia nesse contato. Em tempos em que tudo começa nos “finalmentes”, soa estranho um encontro entre duas pessoas de sexos opostos, sem se deixarem incendiar por paixões fugazes, nem sequer trocar num beijo ardente.
Algumas vezes, quando saíam do Liceu e sabedores de que a conversa renderia, aproveitavam para dar uma volta maior, ao longo da marginal, sorvendo o cheiro a maresia e a carícia da brisa do Índico, pelas noites quentes do verão dos trópicos. A lua prateava as águas serenas onde antes, ao cair da tarde, o sol se banhara em espasmos de vermelho-alaranjado rajados de azul e branco e as damas da noite lançavam seu perfume adocicado no ar.
Naquele tempo, os homens ainda não se tinham tornado feras, não havia assaltos e, até os raros assaltantes, se os havia, não perambulavam pela cidade. Àquela hora estavam vestindo seus pijamas para uma sossegada noite de sono...
Comentários maldosos, insinuações, espanto, descrença, sempre existiram. Poucas são as pessoas que puderam viver uma história dessas. Amor sem sexo. Se todos aceitam que haja sexo, sem amor, por que não aceitar que possa haver amor sem sexo? Com o tempo os passeios se prolongaram numa cidade de sonho, à beira mar, com uma bela marginal, num clima tropical, de noites quentes, que convidavam ao passeio, noite a dentro, sentindo a brisa do mar acariciando os cabelos.
Para ela, ele era um amigo-irmão, um amigo-amigo, um amigo-amor. Talvez fosse um amor, terno, delicado, intenso e suave ao mesmo tempo. Um amor que atravessou os anos, os continentes, os desencontros e os reencontros, que permitia confidências, sem segredos nem mágoas, um amor de respeito como deve ser o verdadeiro amor.
Então, um dia o vento soprou forte, o vermelho das acácias virou sangue derramado. As flores dos jacarandás, de tristeza, atapetaram o chão de lilás, foram pisoteadas e os amigos se perderam. O mundo nunca mais foi o mesmo. A candura daqueles tempos se perdeu, salpicada de lágrimas de sangue.
Se as almas são energias que se reencontram, que os amigos tenham a chance de se rever um dia!
                               Celeste Duarte Batista
Maio de 2016




[1] Machimbombo = Ascensor mecânico, para ladeiras íngremes, segundo o Dicionário da Língua Portuguesa, de Fernando J. da Silva, 3ª ed., Livraria Simões Lopes (1955), mas, em Moçambique, o termo significa o mesmo que ônibus, autocarro.
[2] Carro marca Datsun, modelo bluebird, lançado por volta de 1960.
[3] Carona
[4] Xicuembo = deus da mitologia local.
[5] Umbelúzi  = Rio que abastece de água a cidade e, dizem, "quem bebe de sua água, não se afasta jamais dessa terra de mistérios e lendas".