À Sombra do Cajueiro
Sentada debaixo do
cajueiro, numa velha cadeira de lona, Maria Júlia olhava em redor e uma suave
brisa trazia-lhe lembranças de um passado longínquo. Era um passeio no tempo, que aquele estado de modorra lhe oferecia. O dia estava quente como convém a um
fim de tarde africano, quando o sol baixa no horizonte tingindo de tons
alaranjados o céu azul.
A brisa trazia-lhe
memórias não vividas, de um soar de tambores, enquanto o negro Josias gritava, no
momento em que era açoitado por algum Sipaio[1] de plantão. Qual seria o
novo desacato de Josias? Uma boa dose de indolência ou uma resposta insolente a
seu senhor? Por mais que tentasse, Maria Júlia não conseguira nunca entender com
que direito um ser humano se acha dono de outro e pode espancá-lo a seu bel
prazer. Tratou de afastar, para bem longe, reminiscências de um passado que não
mais lhe pertencia, mas o som dos tambores não deixava de ecoar em seus ouvidos.
De regresso ao presente,
olhou em redor e seguiu, com o olhar, um caju maduro que despencou do ramo mais
alto do cajueiro e que, só por milagre, não a atingiu em cheio. A brisa fresca do
entardecer trouxe-lhe novamente imagens do passado, como as dos dias em que,
debaixo daquele mesmo cajueiro, era obrigada a segurar, pelas patas traseiras,
o pobre coelho acabado de morrer com uma pancada seca atrás das orelhas, para
que o pai o pudesse esfolar. E, apesar
da pena que sentia do pobre bichinho, aprendeu rapidamente a saboreá-lo, depois
de cozinhado. Naquele tempo, fazia parte das suas tarefas diárias alimentar os
coelhos e galinhas e outros pequenos serviços de ajuda doméstica, além da
frequência às aulas e de manter em dia as lições de casa. O resto do tempo era
correr pelo quintal e subir às árvores, procurando sempre o galho mais alto,
mas firme.
Enquanto estes e outros
pensamentos corriam soltos na mente de Maria Júlia, como se de um filme se
tratasse, escutou ao longe um sonoro cantar de galo e percebeu o alvoroço de uma
galinha que esvoaçava ali por perto, perseguindo algum inseto inoportuno, e
bicando os frutos que jaziam no chão.
Não havia, praticamente, fotos desse tempo e dessa casa, mas guardara para sempre na memória a enorme
varanda que ladeava os quartos amplos, ao fundo do corredor que a ligava à sala
de jantar. Esta, por sua vez, dava para o pátio com uma breve escada que levava ao
quintal onde, além do enorme cajueiro à sombra do qual, em imaginação, se
sentava, havia outras árvores de fruto, como goiabeiras e mangueiras e uma bananeira mais adiante. Era um enorme terreno de esquina para duas ruas
identificadas por um número em lugar de nome.
Esse divagar, entre sonho
e realidade levou Júlia a uma lembrança bem distante, mas muito presente ainda na
sua memória. Havia uma festa na cidade vizinha e tinham sido anunciados fogos
de artifício para aquela noite. A família havia-se preparado para ir assistir
quando uma violenta discussão entre o casal pôs fim ao passeio. Diante da
frustração de Júlia, que não tinha ainda completado dez anos, o pai pegou a
bicicleta, colocou uma almofada no quadro e pedalou na escuridão por um tempo
que parecera, a Júlia, infinito, mas que valera muito a pena diante do espetáculo
de luz e cor que se desenhava no céu a cada instante. Foi o êxtase! Nunca tinha
visto, nem veria jamais, uma profusão de luz e de cor tão intensa e deslumbrante!
A vida proporcionou-lhe muitas oportunidades de ver fogos de artificio, os mais
belos do mundo, como dizem ser os das festas de Santa Luzia, em Viana do Castelo, ou os da passagem do ano na praia de Copacabana no Rio de Janeiro, mas nenhum
deles conseguiu superar a imagem que guardava, daquela noite escura como breu em
que andou por dentro da noite, até chegar ao local do deslumbrante espetáculo.
Essa, é mais uma das memórias sem registro fotográfico, que guardará para sempre,
impressa na mente, imagem que poderá acessar, sempre que quiser, e será bem
sua, intransmissível a quem quer que seja. Em vão olha ainda os céus em busca
daquela lágrima de fogo, iluminando a silhueta daquele pai que acabava de
reencontrar depois de longa ausência, e ainda era pouco mais do que um
desconhecido íntimo de quem sondava os mistérios.
Tantos anos volvidos e, sempre que fecha os olhos e permite ao passado fazer incursões no presente,
aquela noite mágica estrala fogos coloridos em sua mente!
Um arrepio provocado pelo
vento que, de repente, começara a soprar forte lembra-lhe que deve recolher-se
pois a noite chegou e com ela relâmpagos e trovões vindos dos quatro pontos
cardeais, iluminam o céu e anunciam a tempestade tropical, assustadora e bela.
Os ramos das árvores
fustigados pelo vento forte, dançam sem parar e, num passe de mágica, o céu se
abre em violentas bátegas de água que lavam e refrescam o ar. É uma chuva
quente que inunda as ruas, sobretudo na maré alta, arrasta o que encontra pela
frente, enquanto no alto, raios e trovões parecem travar um duelo sem fim, mas
pouco tempo depois, toda a violência se esvai e fica o ar lavado em volta e o
calor abrasa a noite do verão africano.
Maria Júlia vê-se agora
sentada na espreguiçadeira do convés do navio, lendo Guerra e Paz de Tolstoi
quando se apercebe de um pequeno novelo de linha de crochê, escapado do colo da
senhora sentada na espreguiçadeira ao lado, rolando em sua direção. Afasta o
livro, debruça-se na cadeira para apanhar do chão o novelinho atrevido e, com
um sorriso, entrega-o à dona. Começava, naquele gesto simples, um longo
percurso de amizade, diluída agora numa longa ausência e distância. Era uma
família pequena, composta pelo casal e um filho de idade muito próxima à de
Maria Júlia. Trocaram-se olhares, apresentações e, logo em seguida, um convite
do filho para um banho de piscina. Maria Júlia aceitou o repto e dispôs-se a ir
colocar o fato de banho e, enquanto se deslocava para o camarote, escutou a voz dele, em
tom galhofeiro, dizer:
- Venha rápido! É só
colocar o maiô, não o vestido de noiva! Todos riram e em alguns minutos ela
retornou, pronta para o mergulho. Era apenas o segundo dia de viagem, dos
quinze de duração total e ainda ninguém entrara na piscina, como se todos
quisessem ver quem seria o primeiro a inaugurar o espaço. O “Príncipe Perfeito”
era um dos melhores navios da frota mercante portuguesa da época, uma pequena
cidade flutuante que contornava a costa africana, do Atlântico ao Índico,
refazendo sempre a rota de Vasco da Gama, levando e trazendo passageiros de
Portugal à Índia. Os dias corriam preguiçosos entre refeições, jogos, dança e
banhos de sol ou de piscina, num escoar de horas até ao próximo porto, onde era
quebrada a rotina.
O café, depois do almoço,
era o pretexto ideal para um desfiar de anedotas e de risos, que às vezes
chegavam às lágrimas, e aquele grupo parecia ser o mais divertido, por isso não
faltava quem fosse chegando a cadeira para mais perto para poder participar
daquele ritual diário de alegria. Algumas noites era projetado um filme, ao ar
livre, no convés e os passageiros se reuniam para assistir. Naquele dia, João Paulo chegou, de blazer azul
marinho e, depois de assistirem a “Luzes da Ribalta” convidou Maria Júlia para
darem um passeio pelo convés. Ela disse:
- Pareces um colegial,
com esse blazer marinho!
- Estou-me sentindo um
colegial que vai sair com a primeira namorada!
Ambos riram, desceram ao convés
inferior e passearam, de mãos dadas, olhando a escuridão da noite, a luz
prateada do luar refletida nas águas do Índico, enquanto a brisa
marítima os envolvia numa carícia silenciosa, cheirando a maresia e a espuma
branca das ondas se desfazia de encontro ao casco do navio. As estrelas, o luar
e a noite, foram as testemunhas silenciosas de um grande amor que acabava de
nascer, mas, desde então, condenado a não se efetivar, pelo capricho de um
destino cruel. João Paulo, acabara de se desligar do exército e aproveitava a
licença graciosa dos pais para passarem uns meses juntos, viajando, antes de
iniciar a sua vida profissional civil. Havia firmado compromisso com uma moça
que, segundo ele, saíra de uma desilusão amorosa e estavam começando um relacionamento.
Nada disso impediu que entre Maria Júlia e João Paulo, se acendesse a chama da
paixão e ambos correram o risco de vivê-la, mesmo suspeitando que não teria o
final do “felizes para sempre”! Uma noite aconteceu o primeiro beijo,
longamente consentido e desejado por ambos.
Um dia, aconteceu o
inevitável. João Paulo saiu da vida de Maria Júlia, para sempre. Seria para sempre?
Apesar da dor intensa da separação, das lágrimas inúteis de Maria Júlia, e de
novas juras de amor a cada recaída, a cada encontro, desencontro e reencontro,
um dia ela jurou para si mesma que não cairia mais nas promessas da voz
aveludada e quente dele. Colocou um ponto final, recusou-se a procurá-lo. Às vezes
ele reaparece-lhe em sonhos, deixando no ar um cheiro a maresia, a
escuridão, a espuma branca e ao luar prateando nas águas, mas quando abre os olhos devagar, só encontra o vazio, a solidão.
Maria Júlia fechou o
livro que lhe descaíra no colo, levantou-se lentamente, entrou em casa, esboçou
um sorriso que poderia, muito bem, ser de felicidade por, tanto tempo depois,
poder recordar com saudade a que foi, a mais doce lembrança de sua vida. Entrou em casa e a chuva, pesada e quente lavou suas lembranças.
Celeste Baptista
Maio de 2016
[1]
Sipaio – Sipai, Sipal ou Sipaio (Pers. Sipãhi
pertencente à cavalaria), Soldado indígena da Índia , ao serviço dos
ingleses (o mesmo designativo usado em Moçambique, ao serviço do governo
português).