14.5.16

O Bluebird


O Bluebird 

Setembro. Noite cálida de primavera africana! As aulas terminaram no horário de sempre e Carla saiu apressada para pegar o machimbombo[1] que, naquele dia, teimava em não chegar, talvez por capricho do motorista que se adiantou, ou do relógio que não marcara a hora certa.   Eram dez da noite e, àquela hora, não pegar o transporte no horário, significava ficar ali, por quase uma hora, esperando o próximo, num lugar deserto e sombrio. Era um absurdo que o transporte utilizado, quase com exclusividade, por alunos que saíam das escolas noturnas, passasse bem no horário em que elas fechavam, pensava Carla enquanto andava de um lado para o outro, como se a breve caminhada, diminuísse o tempo de espera. E continuou pensando que se o horário fosse uns 10 a 15 minutos depois, seria o suficiente para que ninguém fosse obrigado a esperar o próximo transporte, por tanto tempo. 
De um lado da rua ficava o enorme prédio do Liceu, que agora, de luzes apagadas e imensos corredores vazios, mais parecia um prédio fantasma. Do outro lado, um belo jardim não muito iluminado, a que as sombras movediças da noite emprestavam um ar assustador. Não era dada a medos, mas a hora e a ausência total de transeuntes, fazia com que qualquer movimento de folhas ou surgimento de pessoas ou de algum gato sorrateiro, ou cão vadio, se tornasse suspeito e pouco acolhedor. 
Era nesse ambiente sombreado por frondosas árvores em que Carla, completamente só, esperava o machimbombo para o Centro da cidade. Alguns carros passavam, abrandando a marcha ao notar a moça, sozinha, naquele lugar ermo. Sem prestar grande atenção aos carros e andando de um lado para o outro, abraçada aos livros, que segurava contra o peito, em atitude defensiva, pensava em quanto tempo ainda teria de ficar ali, enfrentando sozinha a escuridão. O caminhar impaciente, de um lado para o outro, para aliviar as pernas do desconforto de ficar de pé, parada, dava-lhe a ilusão de encurtar o tempo de espera, como se, dessa maneira, os ponteiros do relógio se adiantassem.
Apesar da miopia e da pouca luz circundante, pôde perceber que o Bluebird[2] que acabava de parar cerca de um metro à sua frente, já passara várias vezes por ali. Que desejaria o homem que caminhava lentamente, sorrindo, em sua direção, pensou. Ficou aliviada ao reconhecer o rapaz de estatura mediana: era um colega de classe, que assim se dirigiu a ela:
− Passei e vi-a sozinha, a esta hora, resolvi dar uma volta e passar de novo. Neste horário o machimbombo demora...
− É, respondeu Carla que, ainda permanecia em guarda, embora reconhecesse não haver perigo.
− Vai para onde? Quer uma boleia[3]?
As aulas haviam começado há poucos dias e, embora se sentassem lado a lado na aula de Latim, mal tinham trocado algumas palavras. Carla aceitou a boleia, gentilmente oferecida por Marcos, tanto pela urgência de sair daquele lugar ermo, quanto da de fugir da horda de pequenos insetos que volteavam em torno da lâmpada, e de alguns mosquitos atrevidos que não paravam de assediá-la.  A noite estava agradável! Entraram no carro e, em menos de dez minutos, chegaram à Baixa, pararam à porta do prédio onde ela morava, bem no centro da “cidade das acácias vermelhas”, como era conhecida Lourenço Marques. A conversa estendeu-se por mais uma hora e assim nascia uma grande amizade.
Criada entre o verde dos pinheiros, chegara a África ainda criança. Ausentara-se para estudos na Europa e, voltava agora, aos dezanove, para uma África que sabia amar, mas ainda não conhecia a extensão desse amor, nem tinha a ideia de que teria de abandoná-la dez anos depois, na certeza de que estava presa nas malhas de um xicuembo[4] que habitava as águas do Umbelúzi[5] e que, de tanto beber dessas águas, se achava, definitivamente, presa à terra amada e perdida. Ironias do destino!
A África é um continente misterioso e envolvente, que se agarra à pele, invade os sentidos, com uma sensação de pertencimento, como se sempre ali se tivesse vivido. Marcos, beirando os trinta, cursara o Magistério e era já diretor de escola. Pretendia aproveitar a recente inauguração da Universidade, para tirar o curso superior de História, por isso tinham apenas algumas disciplinas em comum. Depois desse dia, passou a ser habitual ele levá-la a casa e conversarem, por um bom tempo, dentro do carro, na rua em frente ao prédio.  Os assuntos eram diversos e estabelecia-se um diálogo que corria solto e agradável e nenhum dos dois tinha pressa em dar-lhe um fim. A despeito de comentários maldosos, provocados pela estranheza de um homem e uma mulher ficarem ali, por tanto tempo, na rua quase deserta, sozinhos, dentro de um carro, o que acontecia, eram apenas diálogos intermináveis, alegres, inocentes, entre amigos. Era ousado para a época esse padrão de comportamento. Nesse tempo, homens e mulheres ensaiavam o diálogo da igualdade, mas as mulheres que se permitiam conversar mais demoradamente, em público, a sós com um homem, ainda eram olhadas de soslaio.
Nestes tempos, em que meninos e meninas “ficam” uns com os outros, num assanhamento de fim de mundo, torna-se difícil imaginar que durante anos, aquelas conversas foram apenas conversas e que, mesmo que uma vez ou outra, ele lhe tomasse as mãos entre as suas e comentasse: “Que mãos frias” ao que ela rindo completava o dito popular ”coração quente” enquanto as retirava daquele aconchego macio, nada de libidinoso havia nesse contato. Em tempos em que tudo começa nos “finalmentes”, soa estranho um encontro entre duas pessoas de sexos opostos, sem se deixarem incendiar por paixões fugazes, nem sequer trocar num beijo ardente.
Algumas vezes, quando saíam do Liceu e sabedores de que a conversa renderia, aproveitavam para dar uma volta maior, ao longo da marginal, sorvendo o cheiro a maresia e a carícia da brisa do Índico, pelas noites quentes do verão dos trópicos. A lua prateava as águas serenas onde antes, ao cair da tarde, o sol se banhara em espasmos de vermelho-alaranjado rajados de azul e branco e as damas da noite lançavam seu perfume adocicado no ar.
Naquele tempo, os homens ainda não se tinham tornado feras, não havia assaltos e, até os raros assaltantes, se os havia, não perambulavam pela cidade. Àquela hora estavam vestindo seus pijamas para uma sossegada noite de sono...
Comentários maldosos, insinuações, espanto, descrença, sempre existiram. Poucas são as pessoas que puderam viver uma história dessas. Amor sem sexo. Se todos aceitam que haja sexo, sem amor, por que não aceitar que possa haver amor sem sexo? Com o tempo os passeios se prolongaram numa cidade de sonho, à beira mar, com uma bela marginal, num clima tropical, de noites quentes, que convidavam ao passeio, noite a dentro, sentindo a brisa do mar acariciando os cabelos.
Para ela, ele era um amigo-irmão, um amigo-amigo, um amigo-amor. Talvez fosse um amor, terno, delicado, intenso e suave ao mesmo tempo. Um amor que atravessou os anos, os continentes, os desencontros e os reencontros, que permitia confidências, sem segredos nem mágoas, um amor de respeito como deve ser o verdadeiro amor.
Então, um dia o vento soprou forte, o vermelho das acácias virou sangue derramado. As flores dos jacarandás, de tristeza, atapetaram o chão de lilás, foram pisoteadas e os amigos se perderam. O mundo nunca mais foi o mesmo. A candura daqueles tempos se perdeu, salpicada de lágrimas de sangue.
Se as almas são energias que se reencontram, que os amigos tenham a chance de se rever um dia!
                               Celeste Duarte Batista
Maio de 2016




[1] Machimbombo = Ascensor mecânico, para ladeiras íngremes, segundo o Dicionário da Língua Portuguesa, de Fernando J. da Silva, 3ª ed., Livraria Simões Lopes (1955), mas, em Moçambique, o termo significa o mesmo que ônibus, autocarro.
[2] Carro marca Datsun, modelo bluebird, lançado por volta de 1960.
[3] Carona
[4] Xicuembo = deus da mitologia local.
[5] Umbelúzi  = Rio que abastece de água a cidade e, dizem, "quem bebe de sua água, não se afasta jamais dessa terra de mistérios e lendas".

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