8.3.16

Dia Internacional da Mulher


        Há algum tempo pediram-me para fazer uma palestra intitulada "Mulher e Literatura", ou "A Literatura e a Mulher". Resolvi encarar o desafio, embora o tema fosse demasiado abrangente. Surgiram então as inevitáveis perguntas:
       - De que Literatura e de que mulher falar? Da literatura produzida por mulheres ou daquela que fala sobre as mulheres? De que ponto de vista? 
     - Falar da mulher feminina e frágil, objeto de desejo e de produções literárias masculinas, ao longo do tempo?
      - Falar da mulher forte, liberada que expõe pública e despudoradamente seus desejos, sujeito do seu fazer literário, que se denuda diante de um leitor despreparado para assistir à explosão de um vulcão adormecido por milênios?
       - Preterir uma, em detrimento da outra, quando ambas coexistem no mesmo espaço e tempo?
       Foi para falar um pouco de todas elas, que reuni alguns textos e compus com eles o tema dessa palestra revisitada agora, aqui. Vamos à fala de então:
        
       Enquanto preparava o tema desta palestra, desenhou-se, na minha mente, um imenso desfile de mulheres, de todas as raças e credos que, ao longo da história, desempenharam os mais variados papéis na complexa construção e conscientização do que é: ser humano! De Eva a Maria, de Cleópatra a Maria Antonieta, de Joana D'Arc a Anne Frank, de Marie Curie a Madre Teresa de Calcutá, de Marilyn Monroe à Princesa Diane, de Margaret Thatcher a Mata Hari e todas as mulheres que são ou foram um dia, mães, rainhas ou plebeias, operárias ou administradoras... é tão longo o cortejo que se torna impossível não esquecer alguém.
        Falar de qual mulher? Sobre qual deixar de falar?
      Falar das "mulheres somalis chicoteadas publicamente por usar sutiã" porque um grupo de extremistas islâmicos (homens) decreta que mulheres não podem, nem devem, usar sutiã ou devem usar burcas cobrindo todo o corpo para não serem alvo ou objeto de desejo de outros donos que não sejam "os seus senhores"?
       Devo falar das mulheres mortas, ou ameaçadas de morte por apedrejamento como Sakineh Mohammadi Ashtiani, ou das que ainda, em pleno século XXI, têm seus órgãos genitais mutilados de forma ignóbil e desumana, por que os homens entendem que elas não têm direito ao prazer sexual?
      Devo falar da mulher terna e doce, musa inspiradora de poetas, ou da mulher que escreve a fogo seus textos e canções, da atriz, da pintora, da que canta suas agruras vergada ao peso da enxada, da vassoura ou da marreta de pedreiro, da santa, da pecadora da sedutora, da seduzida? Que mulher? com que voz?
        São tantas as mulheres, ou melhor, são tantos os olhares focados nas mulheres! Olhares de ternura, de compaixão, de afeto e de desprezo, de culpa e de perdão, de amor e de ódio, que, ainda que eu tivesse não uma, mas muitas horas para falar, não esgotaria o tema (os temas). Então, resolvi pegar um texto aqui, outro ali, em tempos e espaços diversos, para poder mostrar como a Literatura, feita por homens ou mulheres, nos dá uma visão multifacetada.
            Século XXI! Vivemos o melhor dos tempos e, por estranho que pareça, um dos piores! Tempo de conforto, tempo da livre expressão de pensamento, apesar de ainda, em alguns lugares as pessoas serem presas e torturadas por expressarem suas opiniões, e muitos paguem um preço alto por suas escolhas!
            Durante muito tempo a Literatura falou da mulher na perspectiva masculina. O homem era o dono do fazer literário, o senhor da vida e da morte, o único que podia ditar normas de moral e de conduta e a mulher era, como dizia Freud, "um continente negro", um continente misterioso e desconhecido, que o homem tenta, desesperadamente, desvendar e dominar, mas que, por isso mesmo, o fascina, como se pode observar no trecho a seguir, de uma carte de Freud a Martha Bernays:
           Quando chega uma carta tua todas as divagações acabam, e acordo para a vida. Todos os problemas estranhos deixam de ter importância, os misteriosos quadros de doenças se desvanecem, e acabam-se as teorias vazias "de acordo com o estado presente da ciência", como elas são chamadas. Então o mundo fica acolhedor, tão alegre, tão fácil de compreender. (Excerto da Carta de Sigmund Freud a Martha Bernays, 9 de outubro de 1883)
            
          Ou nas palavras do escritor moçambicano Mia Couto:

          A Demora

O amor nos condena:
demoras
mesmo quando chegas antes.
Porque não é no tempo que eu te espero.

Espero-te antes de haver vida
e és tu quem faz nascer os dias.

Quando chegas
já não sou senão saudade
e as flores
tombam-me dos braços
para dar cor ao chão em que te ergues.

Perdido o lugar
em que te aguardo,
só me resta a água no lábio
para aplacar a tua sede.

Envelhecida a palavra,
tomo a lua por minha boca
e a noite, já sem voz
se vai despindo em ti.

O teu vestido tomba
e é a nuvem.
O teu corpo se deita no meu,
um rio se vai aguando até ser mar.
        ("idades, cidades, divindades")

        A mais antiga referência literária à mulher remonta ao texto bíblico e à necessidade que o homem tem de uma companheira com quem compartilhar seus momentos de solidão "não é bom que o homem esteja só" (pensa o criador), mas a criatura, pensa desde o começo, na mulher como objeto e propriedade sua:

      Então o homem exclamou: "Esta, sim, é osso de meus ossos e carne da minha carne!"
      Ela se chamará "mulher", porque foi tirada do homem! (Gênesis, I,2 e II, 3)
   
           Por isso o homem se acha, até hoje, o dono da mulher. (Esquecida assim a ideia de Deus de criar uma companheira).
         Ora, se são "carne da mesma carne", deveriam ter mais semelhanças do que diferenças, deveriam ser mais companheiros (não donos), semelhantes ao Amado e à Amada do Cântico dos Cânticos, que se olham com ternura e se deleitam um no ouro:

-  Como és bela, minha amada,  
   como és bela!...
   Teus olhos são pombas.
- Como és belo, meu amado,
   e que doçura!
  Nosso leito é todo relva.
- As vigas da nossa casa são de cedro,
   e seu teto de ciprestes.
- Sou um narciso de Saron,
   uma açucena dos vales.
- Como açucena entre espinhos
 é a minha amada entre as donzelas. 
     (Cântico dos Cânticos I, 15-17 e 2, 1-2)

         Entre dominar a mulher, como o Escudeiro da Farsa de Inês Pereira de Gil Vicente que afirma que "o homem sesudo traz a mulher sopeada", isto é, debaixo do pé (dominada), ou o reverenciá-la, como ser sublime e inalcançável, de quem o homem não é, senão um humilde servo (até o momento de alcançar o objeto do desejo), a Literatura está recheada de exemplos.
         Há momentos em que o homem se sente tão magoado com a morte prematura da amada, que não suporta a dor de viver sem ela e deseja a própria morte para (quem sabe) encontrá-la no além, como podemos verificar neste belíssimo soneto de Camões dedicado a Dinamene.
       
        Alma minha gentil, que te partiste
        Tão cedo desta vida descontente,
        Repousa lá no Céu eternamente,
        E viva eu cá na terra sempre triste.

        Se lá no assento Etéreo,  onde subiste,
        Memória desta vida se consente,
        Não te esqueças do amor ardente,
        Que já nos olhos meus tão puo viste.

        E se vires, que pode merecer-te
        Alguma cousa a dor que me ficou
        Da mágoa, sem remédio, de perder-te,

        Roga a Deus, que teus anos encurtou,
        Que tão cedo de cá me leve a ver-te
        Quão cedo de meus olhos te levou. 
                  (Sonetos)  

          E é ainda a mágoa, a dor da separação e da ausência que que se torna queixa e suspiro na voz de João Roiz de Castelo Branco:

             Senhora, partem tão tristes 
             Meus olhos por vós meu bem,
             Que nunca tão tristes vistes,
             Outros nenhuns por ninguém.

             Tão tristes, tão saudosos,
             Tão doentes da partida, 
             Tão cansados, tão chorosos,
             Da morte mais desejosos,
             Cem mil vezes que da vida; 

             Partem tão tristes os tristes, 
             Tão fora de esperar bem,
             Que nunca tão tristes vistes, 
             Outros nenhuns por ninguém.

Da mulher desejada, admirada e inatingível da poesia clássica, passamos à paixão arrebatadora dos românticos, uma mulher avassaladora, dominadora e sensual que arrasa e perturba o coração e a cabeça do poeta. Eva ou Maria, anjo ou demônio, misteriosa e desconhecida que deixa o poeta completamente à deriva que não sabe como identificar esse ser ora angelical, ora demoníaco:
       
         Anjo és tu, que esse poder
         Jamais o teve mulher,
         Jamais o há-de ter em mim.
         Anjo és que me domina
         Teu ser o meu ser sem fim;
         Minha razão insolente
         Ao teu capricho s'inclina,
         E a minh'alma forte, ardente,
         Que nenhum jugo respeita,
         Covardemente sujeita
         Anda humilde a teu pode.
         Anjo és tu, não és mulher.

         Anjo és. Mas que anjo és tu?
         Em tua fronte  anuviada
         Não vejo a c'roa nevada
         Das alvas rosas do céu.
         Em teu seio, ardente e nu
         Não vejo ondear o véu
         Com que o sôfrego pudor
         Vela os mistérios do amor.
         Teus olhos têm negra a cor,
         Cor de noite sem estrela;
         A chama é vivaz e bela,
         Mas luz não tem. - Que anjo és tu?
         Em nome de quem vieste?
         Paz ou guerra me trouxeste?
         De Jeová ou Belzebu?

         Não respondas - e em teus braços
         Com frenéticos abraços
         Me tens apertado, estreito!...
         Isso que cai no peito
         Que foi?... Lágrima? - Escaldou-me...   
         Queima, abrasa, ulcera... Dou-me...
         Dou-me a ti, anjo maldito,
         Que este ardor que me devora
         É já fogo de precito,
         Fogo eterno, que em má hora
         Trouxeste de lá... de onde?
         Em que mistérios se esconde
         Teu fatal, estranho ser!
          Anjo és tu, ou és mulher?  
                (Almeida Garrett)

                  Sem resposta a seu questionamento diante dessa mulher fatal, o fascínio que ela exerce sobre o poeta (ou sobre o homem em geral) é tal, que ele se propõe a descer aos infernos em busca da amada, como Dante em busca de Beatriz ou Orfeu procurando Eurídice. Mas o Inferno nem sempre é um lugar distante, ele pode morar no poeta, se a paixão for muito intensa:
   
                                               Este Inferno de Amar
                 
           Este inferno de amar - como eu amo! -
           Quem mo pôs aqui n'alma... quem foi?
           Esta chama que alenta e consome,
           Que é vida - e que a vida destrói -
           Como se veio atear,
           Quando - ai quando se há-de ela apagar?  

           Eu não sei, não me lembra: o passado,    
           A outra vida que dantes vivi
           Era um sonho talvez... -  foi um sonho  -
           Em que paz tão serena a dormi!
           Oh! Que doce era aquele sonhar...
           Quem me veio, ai de mim! Despertar? 

           Só me lembra que um dia formoso
           Eu passei... dava o sol tanta luz¹
           E os meus olhos, que vagos girava, 
           Em seus olhos ardentes os pus.
           Que fez ela? Eu que fiz?  - Não no sei;
           Mas nessa hora a viver comecei... 
                                        (Almeida Garrett)

             E assim, a mulher se apresenta multifacetada: uma mulher-mãe devotada, bondosa, abnegada, discreta, comedida, filha obediente, esposa fiel e submissa, uma mulher servidora que atende solícita ao chamado do filho, do marido, dos amigos, santa, assexuada, uma mulher de desejos reprimido ou de prazer sublimado, para se transformar, em seguida, uma mulher moderna, independente, forte, liberada, capaz de assumir e revelar seus desejos, de ser MULHER, dona do próprio destino!
                     Mas, antes de falarmos desta última face, gostaria de me deter um pouco mais no olhar masculino e na tentativa de entender o que significa, para o homem, a natureza feminina. Frederich Novalis afirmava que "ao homem é lícito desejar as coisas sensíveis de maneira racional, enquanto à mulher é lícito desejar as coisas racionais de forma sensível... A natureza principal do homem é a secundária da mulher."
                       O olhar do homem contemporâneo, embora algumas vezes perdido em devaneios do passado (e do presente), começa a tornar-se um olhar de maior proximidade e atenção (sensibilidade), como se verifica no trecho a seguir de Miguel Esteves Cardoso, publicado há algum tempo (não muito, se pensarmos em termos de desenvolvimento de relações humanas), no Jornal português "O Público", fevereiro de 2012.
  
                Gosto mais de estar com ela a fazer as coisas mais chatas do mundo do que estar sozinho ou com qualquer outra pessoa a fazer as coisas mais divertida. As coisas continuam a ser chatas, mas é estar com ela que é divertido. Não importa onde se está ou o que se está a fazer. O que importa é estar com ela. O amor nunca fica resolvido nem se alcança. Cada pormenor é dramático. De cada um tudo depende. Não é qualquer gesto que pode ser romântico ou trágico. Todos os gestos são. Sempre. É esse o medo. É essa a novidade. É assim o amor. Nunca podemos contar com ele. É por isso que nos apaixonamos por quem nos apaixonamos. Porque é uma grande, bendita distração vivermos assim. Com tanta sorte.

              Até aqui procurei mostrar a mulher numa Literatura de perspectiva masculina, como o homem consegue vê-la, como ela permitiu que a vissem...
                 Foram necessários alguns milhares de anos para que a mulher se assumisse como autora, produtora e reveladora de seus próprios desejos. Autora de fiel retrato.
               De Sapho, a mais antiga poetisa de que se tem notícia, às centenas (já seriam milhares?) de mulheres escritoras da atualidade, foi um longo percurso, igualmente impossível de restringir ao curto tempo desta fala. Embora se diga que nas Cantigas de Amigo a fala era feminina, expressando o sentimento da mulher, sabemos que quem as "escrevia" eram homens tentando interpretar o que acreditavam ser o sentimento feminino, disfarçando, em parte, a sua rudeza. Afinal homens também sentem e devem, como dizia Guevara, nutrir sentimentos de amor e de ternura: "Déjem dicirle, a riesgo de parecer ridiculo, que el revolucionario verdadero esta guiado por grandes sentimentos de amor. (...) Hay que endurecerse, pero sín perder la ternura jamás" ("Deixem dizer-lhes, com o risco de parecer ridículo, que o revolucionário verdadeiro é guiado por grandes sentimentos de amor. [...]. Há que endurecer-se, mas sem, jamais, perder a ternura").

                A mulher escritora, da atualidade, não precisa mais passar-se por homem (como George Sand, pseudônimo de Amandine Aurore Lucile Dupin, baronesa de Dudevant), para revelar os recantos de sua alma. A mulher hodierna pode, sem rodeios (ou depois de alguns), despir-se de seu recato diante do público leitor, como tão bem o sabe fazer Maria Teresa Horta num poema chamado Joelho:

                       Ponho um beijo
                       demorado
                       no topo do teu joelho

                      Desço-te a perna
                      arrastando
                      a saliva pelo meio

                      Onde a língua
                      segue o trilho
                      até onde vai o beijo

                      Não há nada
                      que disfarce
                      de ti aquilo que vejo

                      Em torno um mar
                      tão revolto
                      no cume o cimo do tempo

                      E os lençóis desalinhados
                      como se fosse
                      de vento

                     Volto então ao teu
                     joelho
                     entreabrindo-te as pernas

                     Deixando a boca
                     faminta 
                     seguir o desejo delas.

                         Embora a mulher moderna possa continuar, tranquila, serena, à espera do "seu homem" essa espera não é mais uma espera passiva. Insisto ainda em Maria teresa Horta:

                   À Tua Espera

                  Tranquila e serena
                  a nossa casa
                  nos quatro cantos 
                  o sol do meio-dia

                  à tua espera alegre
                  e descansada
                  injecto-me de amor 
                  às escondidas

                  Sobre a garganta passo
                  os dedos espessos
                 e a roupa uma a uma
                 vai caindo

                  para que então amor
                  com os teus dedos
                  quando vieres me vás
                  depois despindo

                   Mas se há espera, é uma espera consentida, feito escolha:
               
                                          Escolha

                   Mete-me medo a tua
                   vida antiga

                    é como um precipício ainda aberto
                    todavia sabendo que hoje em dia
                    é a mim que procuras
                    e preferes

                     E nada mais se opõe
                     ou interfere
                     na nossa alegria retomada
                     na desordem
                             aqui
                     desarrumada
                             amor
                     com que me beijas e me queres.

                      É um prazer de domínio, de ser a eleita, e querer, num desejo mórbido, ser a melhor (ou a pior, "a mais devassa") de todas que ele conheceu:
                     
                       Morbidez

               Das outras só recordas
               o cansaço
               o nojo o vómito
               também o tédio e a náusea
               com aquela aridez de raiva
               que eu alimento com as minhas lágrimas

               E me abraças então
               Nesses momentos
               Os dedos nos meus ombros
               Violentos
               Nada há que queira ou não faça
               Tentando velada mórbida e consciente
               De todas ser a mais devassa.

                  Com que despudor esta mulher revela a consciência e força do seu querer. E como ela guarda, na memória, a presença ausente, ainda forte do amante (amado)

                                Memória

                Retenho com meus
                dentes
                a tua boca entreaberta

                e as palmas das mãos
                dormentes
                resvalam brandas e certas

                As tuas mãos no meu peito

                e ao longo
                das minhas pernas

                  Ousada, para a sua época, foi também Florbela Espanca que, no início do século XX, e a despeito do machismo reinante em Portugal, e de um catolicismo doentio, passa por três casamentos, invade a carreira jornalística e, em sonetos perfeitos, de métrica máscula, grita ao mundo seu desejo:

        Eu quero amar, amar, amar perdidamente!
        Amar só por amar: Aqui...além...
        Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
        Amar! Amar! E não amar ninguém!

        Recordar? Esquecer? Indiferente!...
        Prender ou desprende? É mal? É bem?
        Quem disser que se pode amar alguém
        Durante a vida inteira é porque mente¹

        Há uma primavera em cada vida:
        É preciso cantá-la assim florida,
        Pois se Deus me deu voz foi pra cantar!

        E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
        Que seja a minha noite uma alvorada,
        Que me saiba perder... Pra me encontrar...   
                                      (Charneca em Flor)

                      Afinal, a discussão que se adivinha para um futuro próximo, da relação masculino X feminino, não será saber quem é o mais forte ou o mais fraco, mais perfeito, mais poderoso ou submisso. Não será necessário tornar o homem ou a mulher assexuados, para criar um ser híbrido. O encontro do masculino com o feminino se dará quando cada um, diferente do outro, souber respeitar as respectivas idiossincrasias. Afinal, é na diferença que se completam.
                     Como referi no início, o tema dá "pano para mangas" e não se esgota facilmente. Queria, ou poderia ter falado das mulheres que se destacaram ao longo da história, na política, na ciência, mulheres que foram sujeito e objeto do fazer literário religioso ou profano, mulheres amadas, amantes, inspiradoras e inspiradas, fortes ou fracas, boas ou perversas, mas sempre e eternamente femininas, que querem ser apenas mulheres, como no dizer literário de Adélia Prado:

                    Com licença poética

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado para mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgio que me cabem, sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria, 
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição para homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

         Ou ainda quando se refere ao casamento e se permite uma "submissão" que não é, senão, companheirismo.

                                             Casamento

   Há mulheres que dizem:
   Meu marido, se quiser pescar, pesque, 
   mas que limpe os peixes.
   Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
   ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
   É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
   de vez em quando os cotovelos se esbarram, 
   ele fala coisas como "este foi difícil"
   "prateou no ar dando rabanadas"
   e faz o gesto com a mão.
   O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
   atravessa a cozinha como um rio profundo.
   Por fim, os peixes na travessa,
   vamos dormir.
   Coisas prateadas espocam:
   somos noivo e noiva.

       Creio que de agora em diante as mulheres não precisem se travestir de homens, nem sufocar seus desejos no refúgio das grades conventuais. A mulher de hoje tem um caminho aberto para se dizer, recatada, tímida ou despudorada.
       Como autora do livro de poesia Chuva Quente, não poderia deixar de me posicionar neste dizer da e sobre a mulher, transcrevendo dois textos de meu livro.:

                      Um dia rasgarei os véus
                      E tu virás, incontinente
                      Saciar meu desejo.
                      Um dia, não hoje
                      Que ainda tenho medo.
                      Eterno mal entendido
                      Entre homem e mulher.
                      Um dia rasgarei os véus 
                      E tu verás meu vulcão incontido.

           E, para terminar esta homenagem à Mulher, no seu dia internacional, espero que, cada vez mais as pessoas entendam que as questões de gênero não passam (não devem passar) pelos clichês habituais de quem é o melhor ou o mais forte, mas que homens e mulheres se entendam, se respeitem e se completem nas suas diferenças.
                     
        Deixa que o meu olhar
        Descubra as reentrâncias 
        Do teu corpo vazio de mim.
        Deixa que as minhas mãos em concha
        Saciem minha sede da tua água,
        Do teu vinho, do teu sangue...

        Vazias as taças,
        As mãos, as conchas,
        A seiva e o sangue, 
        O vinho e a água,
        O suor e as lágrimas,
        A chuva quente,
        Vazia de mim.
                (Chuva Quente)
                 
                                         Celeste Duarte Baptista
                
                     
                    

     

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