28.11.16

Fiapos de tempo


                      "Quem fui não me lembra senão como uma história apensa.
                        Quem serei não me interessa, como o futuro do mundo".
                                                                                   Álvaro de Campos

Janeiro de 1963.
Mais uma vez, Cecília mudava o curso da vida. Coimbra era, naquele tempo, uma cidade pacata de tricanas e capas negras. Tudo era novidade. O apartamento pequeno, mas aconchegante: o comboio que, por dias, não a deixava dormir; as colegas; os jogos da Académica; o colégio.  
O Natal passou despercebido, na azáfama da mudança. Também naqueles tempos não havia dinheiro para festas. Todos os recursos foram-se no aluguer, na mensalidade do colégio, cadernos, livros e na austera mobília.
O colégio, situado no alto do morro, sobranceiro ao rio, todo branco, imponente, era "o palácio das janelas verdes", como lhe chamavam as alunas.  Para lá chegar, um tormento. Um tormento, qualquer que fosse o caminho: pela ladeira íngreme ou pela longa escadaria que, vista debaixo, terminava no céu. Essa a sina de Cecília, duas vezes por dia, todos os dias, nos próximos anos.
Naquela manhã de inverno, vento forte, chuva, Cecília vai para as aulas. Abordado o colégio, olha para o alto e decide-se pela ladeira. Nesse instante interpela-a uma mulher, sacos de serapilheira a envolver-lhe o corpo, um à cintura, outro, improvisado capuz, a cobrir-lhe a cabeça, os ombros.
— Ajude-me, menina. Por Deus... ajude-me! — pediu-lhe a mulher.
— Venha comigo — lhe disse Cecília. E acolheu a mulher no pequeno guarda-chuva.
E logo uma rajada de vento revirou o abrigo.
Completamente encharcadas, chegaram à portaria do colégio. Cecília encaminhou a pobre mulher a uma religiosa e dirigiu-se à entrada lateral, procurou a casa de banho mais próxima e tentou secar o corpo, o cabelo e os sapatos, sem grande êxito, mantendo-se molhada até à hora do almoço, quando, finalmente, pôde trocar de roupa. Da mulher, nunca mais ouviu falar, mas a lembrança do seu vulto, da sua fragilidade, nunca se desvaneceu e imortalizou-a, dois dias depois, numa redação. Um mesmo sentimento de abandono e pobreza, por vezes, envolvia a menina e não lhe deixava apagar a imagem. Cecília estudava naquele colégio, porque, segundo as normas, a transferência da escola particular para a pública só era permitida em mudança de ciclo.
D. Amália, nome fictício, como convém à história, era a professora de Português. Uma mulher grande e austera, mas ao mesmo tempo doce. A primeira tarefa que pedira, naquele trimestre, era uma redação — Um Retrato —, que as alunas deveriam levar pronta, na aula seguinte. Tema difícil de desenvolver, sobretudo para um grupo de adolescentes que mal sabia falar de si, quanto mais, ter o olhar aguçado para retratar, física e psiquicamente, alguém do seu conhecimento, com verdade e coerência. Cecília, embora tivesse alguma habilidade com as palavras, tinha passado o fim de semana inteiro, procurando uma inspiração para o retrato e... nada! Subiu angustiada a escadaria do colégio, cumprimentou as colegas correndo e pediu que a deixassem em silêncio, por uns breves instantes para fazer a redação. Aflita, viu a professora entrar, fazer a chamada e dirigir-se às carteiras para verificar quem tinha feito a redação.
— Desculpe, estou acabando de passar a limpo —, disse à professora, meio envergonhada.
Ela nem suspeitava que a professora tinha por hábito chamar algumas alunas para lerem suas redações, em voz alta, diante da turma, seguindo-se os comentários, nem sempre elogiosos, da professora. Ainda trêmula, pôs-se de pé quando a professora chamou seu nome. A voz foi clareando à medida em que avançava na leitura. Quando terminou, mal pôde acreditar, que a professora questionasse se tivera ajuda para a redação. Até as colegas quase se manifestaram para esclarecer que ela a tinha feito, em cinco minutos, antes da professora chegar.
O que Cecília acabava de ler, era o retrato impreciso, de uma mulher maltrapilha, subindo a seu lado a ladeira do colégio, numa expressão de fome e de miséria, como se de um esboço impressionista se tratasse. Cumprira a tarefa. A professora gostara, mas chamá-la-ia muitas outras vezes para ler as redações. No início, para provar que eram de sua autoria, depois, como exemplo de uma boa escrita. Assim se estabeleceu uma feliz relação entre a exigente professora de Português e a menina que gostava de escrever, de ler, de ouvir histórias. Talvez tenha sido aquele o momento em que Cecília decidira não ser a advogada que lhe tinham vaticinado, mas a professora que acolheria, numa longa jornada, milhares de alunos, ora angustiados pela ânsia do saber, ora felizes pela descoberta do sonho. Essa profissão permitir-lhe-ia praticar seu senso de retidão e de justiça. E à pobre mulher vestida de miséria, de quem nunca soube nem o nome, nem que caminhos terá percorrido, passou a dedicar uma gratidão silenciosa.
De todas as imagens que lhe povoam o imaginário, poucas permaneceram tão fortes, e por tanto tempo, na memória, como a dessa sombra fugidia que num dia de tempestade, abrigou, desabrigando, sob o frágil guarda-chuva. Em nenhum outro inverno o Mondego avançou tanto sobre os laranjais, deixando um retrato de desolação, com as copas das árvores tocando as águas revoltas, enquanto as laranjas eram, apenas, minúsculos pontos dourados, dançando no balanço do rio que se fizera mar.
Desses farrapos de tempo, também se mantém viva, na memória de Cecília, a imagem da pequena Isabel, subindo e caindo a escadaria íngreme. Naquele dia a criança, que não teria sequer, completado cinco anos, rejeitou com violência a ajuda de Cecília que ficou perplexa diante de tal reação. Apesar da diferença de idades, eram boas amigas. Muitas vezes, já tinham subido juntas a mesma escada rindo e brincando, mas, nos últimos dias, Isabelinha perdia o equilíbrio, com uma frequência cada vez maior, e uma amarga revolta crescia em ritmo acelerado.
A notícia de que a menina contraíra Poliomielite — a famigerada paralisia infantil — deixou Cecília chocada e revoltada. Como poderia uma criança tão linda, que adorava subir correndo a escadaria do colégio, estar condenada a uma cadeira de rodas? Entendeu a revolta da criança, que agora era a sua revolta. Se existe um Deus de bondade e justiça, como sempre escutava nos sermões dominicais, como poderia Ele consentir numa desgraça assim? Como se rouba a uma criança o sagrado direito de correr, subir às árvores, chapinhar os pés na lama?... 
Em poucos dias Isabel abandonou o colégio e as notícias foram rareando. Nunca mais soube o que aconteceu com a criança, se conseguiu, ou não, superar a revolta. Para Cecília esse é mais um dos elos perdidos da cadeia da vida.
E foi, também, às margens do Mondego, que viu crescer as amizades do grupo “Os seis magníficos” que, “na hora da despedida”, para marcarem os bons momentos vividos e, com ou sem habilidade para versejar, deixaram, cada um a seu modo, impresso, nuns versinhos de pé quebrado, o relato dos dias de convívio, para que, ao lê-los mais tarde, pudessem recordar e reviver as mesmas emoções.

Mas essa é uma outra história!

Nenhum comentário:

Postar um comentário