21.6.18

O Pintassilgo e o Poeta


Caminho a teu lado na rua apinhada de gente, falando línguas que não entendo. Caminho a teu lado e vejo o que de longe me parece ser uma estranha e enorme pomba, imóvel, pousada no muro que dá para o vazio. Não pode ser! É grande demais! Talvez uma gaivota estranhamente mansa, coçando as penas, indiferente aos olhares humanos que a cercam. Olho de novo. Não, não é uma pomba, é uma gaivota que, para espanto geral, se mantém naquele mirante, imóvel e indiferente a tudo e a todos.
Sempre achei que gaivotas fossem pássaros selvagens, ariscos, que se assustassem à menor ameaça de aproximação dos humanos. Aquela, estava ali, parada, ao alcance da mão, naquele velho muro debruçado sobre o Douro, coçando as penas, calma, tranquila. Inacreditável! Mais adiante um gato, igualmente desinteressado dos humanos, espoja-se na areia, espreguiça-se e corre em direção à gaivota, que o ignora solenemente. Os turistas, máquinas em punho, desviavam o olhar do casario que se precipita sobre o rio e apontavam as máquinas para o gato, para a gaivota, enquanto tu fotografavas os turistas, fauna estranha a todo este cenário e sorrias de toda esta loucura humana e do meu encantamento diante da cidade amada, tantas vezes visitada e tão desconhecida!
Continuamos a caminhada, nesse ou em outro dia qualquer. Andando, chegamos ao ponto exato onde, alguns anos antes, observamos o rio “azulmente” escorrendo para o mar. Outrora, o casario corroído pelo tempo, deixava vislumbrar restos de vida. Então, “vi claramente visto” uma máquina de costura no alto de um telhado. Que faria ela em tão inusitado lugar? Que faria, ali, no alto do telhado, uma máquina de costura? Quem a teria colocado ali? Com que intenção? Não teria sido apenas, a necessidade urgente de se livrar de um objeto útil, tornado inútil? Será que a costureira morreu e ninguém se interessou em seguir-lhe a profissão em tempos de prêt-à-porter? Curiosidade não satisfeita prosseguimos o caminho.
Percorremos as margens do rio em busca de uma nova imagem de luz ou de sombras, de um lugar para tomar uma água e refrescar a boca seca pelo calor de agosto (seria julho, ou setembro, que importa?) e subimos espremidos no funicular para continuar a caminhada, perseguindo pichações eróticas, engraçadas, simbólicas, espalhadas pela cidade. O dia foi de descobertas, desde a de um pisco pousado sobre a cabeça do busto de António Nobre, pobre poeta sempre tão SÓ, agora visitado pelos ladrões de cobre que lhe roubaram a identificação, as inscrições e cagado de pássaros que poeticamente pousam sobre sua cabeça! Onde andará o verso capaz de traduzir a imagem registrada na foto: “um pássaro pousado na cabeça do poeta”!
Quem poderá descrever a poesia de um dia de sol, da visita furtiva de um ateu a meia dúzia de igrejas, onde o silêncio, a paz e a arte barroca imperam? Vejo, na tua falta de fé uma crença tão forte no belo, capaz de captar imagens que ninguém mais vê. Dia cheio de imagens, de cores, de sons, de cheiros, de encontros e desencontros, como no dia em que percorremos, juntos, outras ruas da cidade.
   Pode ser que para o outro mundo eu possa levar o que sonhei, 
   Mas poderei eu levar para o outro mundo o que esqueci de sonhar? 
                                                 (Álvaro de Campos)
Vejo, para lá de outros elos que nos unem, um encontro silencioso de almas, como se bastasse apenas um olhar, para que o diálogo, sem palavras, flua como um rio — poderia ser o Douro — e se encontre no coração.
Nossos caminhos são cheios de desencontros. Talvez por isso, eu ainda guarde a imagem da infância, do ar altivo de lorde inglês, do alto dos teus seis anos de idade. Adolescentes, o reencontro fugaz, se fez desencontro. Adultos, os encontros se diluíram na poeira do tempo e da distância, entre Áfricas longínquas, tão diferentes quanto irreconhecíveis, inconciliáveis! (serão?). Assim, encobertos na densa bruma do D. Sebastião, somos imagem esvaída de um álbum antigo de fotografias.
A velhice pode ser surpreendente! Não sei por que se nega a velhice, se nela, tudo pode acontecer... terreno onde as convenções deixaram de fazer sentido, e a liberdade chega despudorada, despida de preconceitos... não para todos, claro, mas para os que souberam viver sem medo, para os que conservaram um sorriso por trás da cortina de lágrimas, para os que teimam em ver o sol espreitar por entre densas nuvens.
Caminho a teu lado na rua apinhada de gente, falando línguas que não entendo, enlaçamos as mãos e nem mesmo assim tenho a certeza de que falamos a mesma língua.

Nossas sombras

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